Racismo estrutural: a invisibilidade mediática e nas artes das minorias étnicas
Desaparecidos em tempo de COVID
O ano de 2020 foi mais difícil do que o costume para os fazedores de cultura no mundo todo, por causa das restrições levantadas pelos governos, como forma de tentar controlar a pandemia da COVID-19. Conhecida por ser “um sector já de si caracterizado pela precariedade e pela intermitência”, a área de produção cultural, em Portugal, entrou em completo colapso financeiro.
A dramaturgia em TV, Cinema ou nos Palcos de Teatro, foi por certo severamente afetada, com produções canceladas, espetáculos adiados e salas de cinema cada vez mais vazias (quando abertas). Talvez a crise financeira seja um dos motivos pelos quais a ausência de atores negros nas produções televisivas se tenha tornado ainda mais acentuada. Porque eles estão ausentes e porque as pessoas têm passado mais tempo em casa (confinadas) e como tal, têm consumido mais televisão.
A ausência de pessoas negras (e de outras minorias raciais) na televisão em Portugal é tão real que a estreia de um pivot negro (Cláudio França) num noticiário da SIC Notícias em setembro de 2020, foi motivo de ampla especulação e comentário, dentro e fora das redes sociais. Esta ausência tem sido bastante real também nas produções de entretenimento.
Numa situação de ainda mais agravada precariedade, dá-se prioridade a atrizes e atores não provenientes de minorias étnicas? Talvez por serem considerados cidadãos de segunda categoria, portugueses menos importantes, os performers com ascendência diferente da etnia dominante são automaticamente excluídos?
Talvez o campo das artes seja apenas o reflexo mais flagrante de como a sociedade portuguesa se encontra estruturada. Fortemente alicerçada no passado esclavagista e colonial, a sociedade portuguesa parece hesitar em deixar ir a ideia de que aos negros - e a todas as outras minorias raciais, o único lugar que cabe é o de subalternização ou de inexistência.
Assim, usando as novelas como exemplo e partindo da premissa de que estas são um retrato do país, tem lógica que os negros só apareçam em papeis de subalternização, cumprindo estereótipos desmerecedores ou que não apareçam por completo, simplesmente não existam. Não que estes não existam no mundo real, são simplesmente empurrados para a invisibilidade à qual os últimos do escalão social e racial são votados.
São negros em Portugal
Em 2019, Portugal registou, em comparação com o ano precedente, um aumento de 38,7% no número de autorizações de residência emitidas pelo SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) a cidadãos estrangeiros, 57,4% para imigrantes provenientes do continente africano. Estes africanos e provavelmente outros afrodescendentes vindos de diferentes latitudes, juntaram-se aos milhares (milhões talvez, o Censo ainda não transmite esta informação) de negros portugueses que já moravam em território português.
São pessoas que vivem, trabalham, pagam impostos, contribuem para a segurança social, para o rejuvenescimento da população, para a arrecadação de prémios a nível do desporto, mas são remetidos ao esquecimento quando se fala de representatividade mediática. Cenicamente não existem, e isso é grave.
As artes performativas, assim como todos os outros quadrantes da sociedade, funcionam por meio de instituições que as regulam, lecionam, mostram, etc. Segundo o filósofo Sílvio Luiz de Almeida (2018), o racismo vai muito além das ações isoladas dos indivíduos, reside também no poder das instituições. As instituições visam essencialmente a manutenção de um status quo vigente.
Almeida afirma que as instituições “são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos”, ou seja, “as instituições são racistas porque a sociedade é racista.” Assim, instituições que produzam conteúdos dramatúrgicos, tais como companhias de teatro, empresas de produção etc., não estão isentas desta influência da sociedade.
“Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ em que se constituem as relações políticas, económicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção”. (Almeida 2018, 38)
Faz lembrar, de certa maneira, as estratégias usadas pela propaganda dos regimes totalitários. Assim como acontecia com os filmes de Leni Riefensthal, a famosa propagandista nazista, em que a manipulação das emoções tinha como objetivo levar as massas a acreditarem nos ideais do sistema, as instituições ligadas à cultura e à dramaturgia manipulam emoções e noções do público como forma de manutenção dessa mentalidade colonialista.
“O mais importante é que commumente se pensa que o nacional-socialismo representa somente a brutalidade e o terror. Mas isso não é verdade. o nacional-socialismo – e, de um modo mais geral, o fascismo – também representa um ideal, ou melhor, ideias que persistem ainda hoje, sob outras bandeiras: o ideal de vida como arte, o culto à beleza, o fetichismo da coragem, a dissolução da alienação em sentimentos extáticos da comunidade”. (Sontag 1986, 76)
Assim funciona também o racismo, sem abertamente condenar as minorias étnicas ao uso de cartões de cidadãos de segunda categoria, sem instituir juridicamente um “apartheid”, mas colocando-as nessa posição de segundo plano eterno, de separatismo dissimulado. Porque os ideais de um país completamente branco, permanecem nem tão escondidos assim.
No caso dos filhos de imigrantes, nascidos em território luso, a Televisão não precisa de bradar a todos os ventos, várias vezes ao dia: “Vai para a tua terra, preto”, basta que não mostre o preto nesta que é a sua terra. Um peso a mais, para o já de si pesado, fardo de não pertencer nem a terra dos pais nem a terra onde nasceu.
A mordaça da invisibilidade
“A boca é um órgão muito especial, ela simboliza a fala e a enunciação. No âmbito do racismo a boca torna-se o órgão da opressão por excelência, ela representa o órgão que os(as) brancos(as) querem – e precisam – controlar e, consequentemente o órgão que, historicamente, tem sido severamente censurado.” (Kilomba 2019)
Interessante que este posicionamento de Grada Kilomba me remeta para alguns projetos televisivos, onde, de vez em quando, aparecem pessoas negras a fazer figuração. Estão lá, mas estão de boca calada, não têm poder de falar, de contestar. É simbólico, ainda que mesmo quando estão em papéis de maior destaque pouco ou nenhum poder lhes seja dado, continuam amordaçados.
Nas vezes em que a “máscara de silenciamento” que amordaça o personagem não é o silêncio nu e cru, ela vem em forma de submissão, humilhação, vilificação e desacreditação. O personagem acaba por ser sempre o empregado, o bandido, o subserviente e quando por algum motivo é rico ou ocupa posições mais “nobres”: não tem escrúpulos, é mau caráter, enriqueceu de forma duvidosa.
Grada nos lembra que “não é com o sujeito Negro que estamos lidando, mas com as fantasias brancas sobre o que a Negritude deveria ser. Fantasias que não nos representam, mas sim o imaginário branco.” Fantasias forjadas durante o período colonial provavelmente, mas que continuam presas nas cabeças de muitos e são projetadas no “outro” que é o sujeito negro.
“Poderíamos dizer que no mundo conceitual branco é como se o inconsciente coletivo das pessoas Negras fosse pré-programado para a alienação, decepção e trauma psíquico, uma vez que as imagens da Negritude às quais somos confrontados(as) não são nem realistas nem gratificantes. Que grande alienação ser forçado/a identificar-se com heróis brancos e rejeitar inimigos que aparecem como Negros. Que decepção, sermos forçados(as) a olhar para nós mesmos(as) como se estivéssemos no lugar deles(as). Que dor, estar preso(a) nesta ordem colonial. Esta deveria ser nossa preocupação. Não deveríamos nos preocupar com o sujeito branco no colonialismo, mas sim com o fato de o sujeito Negro sempre ser forçado a desenvolver uma relação consigo mesmo(a) através da presença alienante do outro branco (Hall, 1996). Sempre colocado como ‘Outro’, nunca como ‘Eu’” (Kilomba 2019, 38,39)
Negros que vivem na diáspora, como os que moram em Portugal, crescem num ambiente traumático sem muitas vezes o perceberem. Crescem numa sociedade pensada, criada e mantida para ser branca, em total alienação com o que o sujeito negro é de facto.
Alheios a outras referências, crescem muitas vezes a acreditar nessa imagem que a sociedade projeta deles: em eterna posição de inferioridade, de feiura, de proscrição e relegados ao papel de vilão social. Dissociar-se dessa imagem implica um esforço triplo em todas as tarefas e a ideia de estar em estado de alerta constante para não sair da bolha que foi designada pela sociedade racista como perfeito.
Os alunos têm de ser três vezes melhores para serem considerados bons e quando o são têm de o justificar, os funcionários têm de chegar mais cedo, sair mais tarde e dar 200 % para receberem o que o sujeito branco na mesma função recebe – e mesmo assim correm o risco de nunca chegar a receber. As mulheres têm de se adaptar a padrões de beleza ainda mais agressivos, porque estes simplesmente não as contemplam.